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Cineasta com deficiência visual escreve terceiro filme

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A perda da visão não fez com que João Antunes, de 49 anos, desistisse do sonho de se tornar um cineasta. Cego desde os 30, o morador de Brazlândia se prepara para gravar o terceiro filme, intitulado “Cavaleiro da Esperança”, uma sátira do cenário político brasileiro. O elenco do curta, que será representado por 25 atores da comunidade, deverá custar cerca de R$ 150 mil.

O cineasta utiliza a bengala de 1,30 metro para medir o “espaço”. São os diretores e auxiliares da equipe que descrevem para Antunes o que vai ser gravado.

“Eu enxergo mais do que as pessoas que têm visão. A bengala é minha parceira, sabe? A uso para ter noção do posicionamento em cena dos atores. Fico sempre atento aos sons também.”

A paixão pelo cinema, segundo Antunes, surgiu após assistir a novela “Irmãos Coragem”, exibida pela TV Globo na década de 70. A experiência com o teatro brasiliense surgiu logo depois.

“Quando pisei pela primeira vez em um palco senti meu coração acelerar, o sangue esquentar. Realmente senti que era aquilo que eu queria”, disse.

Aos 15 anos, o cineasta começou a perder a visão. Ele conta que se machucava quando andava de bicicleta, por exemplo, ou até mesmo nas atividades do cotidiano. “Eu estava tranquilo, quando de repente eu não enxergava mais nada. Parecia que tinha apagado a luz. Depois voltava normalmente. Até quebrei meu braço assim”, conta.

Após diversos acidentes, o cineasta decidiu ir ao médico. Com alguns exames, foi detectada uma retinose pigmentar, doença hereditária. “O doutor disse que só conhecia quatro casos no Brasil. Fui perdendo a visão de pouquinho em pouquinho. Aos 30, fiquei completamente cego.”

O morador de Brazlândia diz que a lua foi a última imagem que viu. Com a cegueira, veio a depressão, que durou quase um ano. Nesse período, ele não tomava banho, não penteava o cabelo e nem se alimentava direito. “Engordei 20 kg, fumava demais. Só saía de casa para comprar cigarro”, lembra.

A aceitação da deficiência veio com um acidente inusitado. Antunes estava caminhando sozinho e sem bengala  quando bateu a cabeça em um poste. “Eu me recusava a usar bengala e não queria ajuda de ninguém. Quando bati no poste, pensei que era até uma pessoa, pedi desculpa. Só depois me deparei com o sangue escorrendo. A partir daquele dia, eu mudei.”

O cineasta aprendeu Braile, entrou na escola de cegos da 612 Sul e começou a usar um computador adaptado, criado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. A máquina, que “conversa” com o usuário, foi utilizada para desenvolver os média-metragens “Uma vela para Deus e outro para Bento”, em 2010, e “Jogo mundo e preto-branco”, em 2012.

Roteiro
Os roteiros dos filmes duram em torno de uma semana para serem escritos.”Viro a noite escrevendo. Sou muito detalhista, sabe?”, diz. Os atores do atual filme, que tem entre 3 e 63 anos, são moradores de Brazlândia e Ceilândia. Eles participam das gravações gratuitamente, tudo em nome da diversão.

Estudante, Mateus Moura, de 17 anos, é ator e diretor do curta “Cavaleiro da Esperança”. A inspiração do roteiro surgiu após um trabalho escolar. “Precisávamos fazer um filme e pedi ajuda para o João. Após a apresentação, ele foi adequando o curta e ficou perfeito. As histórias que ele cria são geniais. O jeito que ele conversa, age. Até esqueço que ele é cego.”

O atual filme “Cavaleiro da Esperança” é uma sátira que brinca com o cenário político brasileiro. Personagens como Zika do Chef, Chechéu Temer e Meliante Cunha fazem parte da história. O enredo gira em torno do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff.

“Juntamos artesãos, donas de casa, comerciantes. Nosso elenco é vasto, gente comum, que não tem muita experiência com teatro. Infelizmente, não temos verba e estamos pedindo ajuda para a comunidade e empresários. São R$ 150 mil necessários para a realização do filme”, diz Nádia Castro, de 54 anos, atriz e esposa de Antunes.

Ainda não há definição sobre data de início das gravações do filme. Porém, o grupo está animado e ensaia as cenas todos os finais de semanas. Rígido, Antunes participa de todos e pede o máximo de esforço dos atores.

“A cegueira me fez enxergar. Hoje, sou uma pessoa melhor, mais paciente, feliz e confiante. O país precisa de mais incentivo na cultura. Mesmo sem apoio, não vou desistir. Já ouvi que cinema é coisa de quem vê. Tudo mentira. Cinema é coisa de gente apaixonada, gente que respira e ama a arte”, diz o cineasta.

G1

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