Brasil
Combate ao abuso infantil exige mobilização e atenção urgente da sociedade
A violência contra crianças e adolescentes ainda é uma realidade alarmante no Brasil. De acordo com dados obtidos pela Fundação Abrinq, publicados na “Caderneta do Cenário da Infância e Adolescência no Brasil em 2025”, apenas em 2023 foram registradas mais de 78 mil notificações de violência, das quais mais de 57 mil envolviam vítimas com menos de 19 anos. A região Sudeste lidera o ranking com mais de 35 mil casos. Já no Norte do país,a violência sexual contra meninas chama a atenção: 75,8% das agressões acontecem dentro de casa.
O ambiente virtual também exige atenção. Segundo levantamento da SaferNet, o número de denúncias envolvendo usuários do Telegram que compartilharam imagens de abuso e exploração sexual infantil aumentou 78% entre o primeiro e o segundo semestres de 2024. Além disso, o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking mundial de países com mais denúncias de páginas que divulgam esse tipo de conteúdo, conforme relatório da rede internacional InHope.
A psiquiatra Juliana Mokayad, do CAPS Infantojuvenil II M’Boi Mirim, unidade gerenciada pelo CEJAM – Centro de Estudos e Pesquisas “Dr. João Amorim” em parceria com a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (SMS-SP), alerta: “A internet e as redes sociais podem ser grandes aliadas na divulgação e prevenção da violência. Porém, sabemos também que pode ser um veículo para a exposição da criança e do adolescente. Tanto a riscos para elas mesmas, que podem ficar mais vulneráveis aos abusadores, por meio de conversas nas redes sociais, assim como por acessar conteúdos de violência e praticar com outros colegas. O uso da internet e das redes sociais precisa ser regulamentado e acompanhado pelos pais. Crianças e adolescentes não devem navegar sem supervisão”.
De acordo com a médica, mudanças de comportamento são um dos principais alertas. “Em situações de violência, as crianças costumam apresentar maior instabilidade emocional, ficando mais chorosas, irritáveis ou agressivas. Algumas podem desenvolver comportamentos erotizados ou utilizar discursos com conteúdo sexual inadequado para a sua faixa etária. É comum também que evitem determinados locais ou pessoas que antes frequentavam ou conviviam normalmente, o que pode indicar alguma relação com episódios de abuso.”
Os impactos do abuso no desenvolvimento emocional e cognitivo geram traumas que podem desencadear diversos transtornos psiquiátricos, como ansiedade, depressão, estresse pós-traumático, ou qualquer outro tipo que constar no código genético da criança, tornando-a predisposta. “O abuso sexual, a exploração e qualquer tipo de violência geram traumas profundos. Hoje há muitos estudos sobre o impacto avassalador para o aparelho psíquico e o sistema neurológico que, inclusive, estão sendo estudados na neurobiologia, já que na exposição ao trauma o organismo desencadeia uma série de respostas fisiológicas hormonais que levam a uma síndrome inflamatória, capaz até de levar a morte de neurônios. Com isso, o próprio desenvolvimento do cérebro pode ser alterado, principalmente em crianças mais novas”.
Já no aspecto psicodinâmico os traumas podem impactar também nas relações afetivas. “Crianças e adolescentes que passam por esses tipos de violência podem ter um grande prejuízo na capacidade de estabelecer um apego saudável com os adultos e outras pessoas da mesma idade. O que pode acarretar um padrão de insegurança nas relações e incapacidade de estabelecer vínculos saudáveis e duradouros”, complementa.
Segundo Mokayad, a orientação sobre abuso sexual precisa ser adequada à capacidade de compreensão de cada faixa etária: “Toda informação precisa ser transmitida respeitando o que aquela criança é capaz de entender. Não adianta dar detalhes excessivos ou informações complexas para uma criança pequena que ainda não tem estrutura psicológica para absorver tudo. Para os menores, é melhor focar em orientações mais gerais, como não se aproximar de estranhos e não permitir que ninguém toque em seu corpo. Conforme crescem e amadurecem, podemos aprofundar o diálogo, oferecendo mais detalhes. A partir daí podemos ser mais específicos em relação às advertências quanto a atitudes suspeitas dos abusadores”.
Para fortalecer a rede de proteção, Juliana ressalta a necessidade de um ambiente familiar aberto ao diálogo: “O maior fator de proteção para as crianças e adolescentes é contar com um ambiente receptivo e acolhedor em casa, em que o diálogo é estimulado e realizado continuamente. Os pais ou cuidadores precisam ter uma comunicação clara, não violenta, acolhedora e receptiva”.
E para além do ambiente familiar, as campanhas de conscientização também são fundamentais para alertar a sociedade sobre a realidade dos abusos. “É necessário orientar sobre como agir diante de suspeitas e, assim, inibir agressores. Quando a população está mais atenta, as chances de denúncias e penalizações aumentam. A divulgação de estatísticas também contribui para a criação de leis mais específicas, fortalecendo a proteção às vítimas”, afirma a psiquiatra.
Dados da Equipe Especializada de Violência (EEV) do Campo Limpo, administrada pelo CEJAM em parceria com a SMS-SP, revelam que, entre 2022 e abril de 2025, mais de 4.780 vítimas foram atendidas (entre crianças, adolescentes e familiares). Somente entre novembro e dezembro de 2022, em um curto intervalo de tempo, foram registrados 306 atendimentos. Já entre janeiro e abril de 2025, esse número chegou a 539 casos. O serviço abrange as regiões do Campo Limpo, Capão Redondo e Vila Andrade.
Segundo Maximiliano Costa, gerente da EEV no território, os registros de violência contra crianças e adolescentes vêm crescendo nos últimos anos, assim como as notificações inseridas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). Somente na unidade do Campo Limpo são atendidas em média 80 crianças/adolescentes e seus familiares. Ele reforça que a notificação é obrigatória para todos os profissionais de saúde, seja da rede pública ou privada, sempre que houver suspeita ou confirmação de violência, “Ainda enfrentamos um cenário de subnotificações, o que dificulta a articulação do cuidado e a adoção de ações clínicas eficazes no enfrentamento à violência”, ressalta.
As vítimas chegam à Equipe Especializada de Violência (EEV) por meio de encaminhamento feito pelos Núcleos de Prevenção à Violência (NPV) das Unidades Básicas de Saúde (UBS) de referência da região onde a família reside. O fluxo se inicia com a identificação da situação de violência pelo NPV, que realiza a notificação e aciona os protocolos previstos pelo serviço.
Costa explica que, na maioria das situações, crianças e adolescentes chegam ao serviço acompanhados por seus pais ou responsáveis, uma vez que o atendimento é voltado prioritariamente ao cuidado desse público, seja na condição de vítima direta ou testemunha de violência. Os casos de violência sexual recebem atenção prioritária no acolhimento. “As situações são discutidas em reuniões de matriciamento com a EEV. Quando os critérios de elegibilidade são atendidos, é agendado um primeiro encontro com a família para avaliação inicial e definição do plano de cuidado especializado”, afirma.
Nesse primeiro atendimento, os casos são analisados em reunião de equipe multiprofissional, com participação das áreas de Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional, de acordo com as necessidades identificadas. “O foco permanece centrado no cuidado integral de crianças e adolescentes expostos a situações de violência. Além dos atendimentos na unidade, o trabalho inclui visitas domiciliares e articulações intersetoriais com as redes de saúde, assistência social, justiça e educação, garantindo uma abordagem integrada e contínua”, ressalta Rayssa Béder, Terapeuta Ocupacional da EVV Campo Limpo.
Nos casos mais graves, as vítimas são encaminhadas aos centros especializados de atendimento. As unidades do CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e os Núcleos de Prevenção à Violência das Unidades Básicas de Saúde gerenciadas pelo CEJAM contam com equipes multidisciplinares preparadas para prestar atendimento psicológico e social seguindo os protocolos específicos do SUS (Sistema Único de Saúde), garantindo um acolhimento integral e humanizado da vítima, com escuta qualificada, atendimento psicológico e, quando necessário, encaminhamento para serviços médicos e jurídicos especializados.
Denuncie
A denúncia de qualquer tipo de violência contra crianças e adolescentes é anônima, e pode ser feita de forma gratuita pelo telefone, Disque 100, por meio do WhatsApp (61) 99611-0100, no site da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH) ou pelo app Direitos Humanos Brasil.